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Medo e voracidade

Este é um artigo escrito a partir da dúvida de um de nossos alunos que visa esclarecer as consequências da inveja na clínica psicanalítica tendo como referência a obra “Inveja e Gratidão” de Melanie Klein. Ao final do artigo, veremos como o entendimento dos efeitos práticos da inveja permite ao(à) psicanalista a compreensão das ações e sintomas apresentados pelo paciente/cliente durante as análises. Aborda também questões importantes como os erros de tradução da Imago[1] que comprometem o aprendizado da psicanálise. 

Primeiramente, o(a) aluno(a) apresenta a seguinte frase extraída de Inveja e Gratidão:

“Na análise verificamos que, quando um paciente está com grandes dúvidas sobre seu objeto e, portanto, também sobre o valor da análise e do analista, ele pode agarrar-se a qualquer interpretação que alivie sua ansiedade e tender a prolongar a sessão, por desejar tomar para dentro tanto quanto possível daquilo que, no momento, sente ser bom. (Certas pessoas têm tanto medo de sua voracidade que fazem especial questão de sair na hora.)”

Em seguida, o(a) aluno(a) formula a seguinte pergunta:

“Nesse fechamento fiquei em dúvida quanto a uma possível contradição. Se como diz no trecho acima, o paciente tende a Intensificar a voracidade porque está com inveja (ou com incerteza quanto ao objeto ser ‘bom’) como pode ele parar/frear/estancar a voracidade [e querer sair na hora]? Entendo que para não haver contradição tenho que ter como premissa que o Medo é um impulso que paralisa/estagna/estanca/detém a Voracidade. Então, posso imaginar que o Medo seria um bloqueador para a Voracidade. E, por seguinte, o Medo seria um bloqueador da Inveja e a Incerteza quanto algo ser ‘bom’. Mas tenho o entendimento de que o Medo é uma espécie de antônimo/contrário/oposto/contraditório de Fruição e Gratidão, o que me gera nova contradição. Para não haver contradição, será que o Medo seria encaixado em outra seção/classificação nos trabalhos de Melanie Klein? Como Melanie Klein vê o medo? Quanto ao cliente/paciente que não vive a Voracidade devido ao Medo e considerando que os conteúdos recalcados/reprimidos se manifestarão em forma de sintomas mais tarde, quais seriam os exemplos de sintomas que a Voracidade recalcada/reprimida pelo Medo poderia manifesta posteriormente?”

O(a) aluno(a) apresenta alguns pontos importantes em sua pergunta. Para que possamos compreender se há contradição ou não de fato, precisamos recorrer aos textos originais de Klein. 

Melanie Klein apresenta o seguinte texto em inglês:

“[…]In analysis we find that when a patient is in great doubt about his object, and therefore also about the value of the analyst and the analysis, he may cling to any interpretations that relieve his anxiety, and is inclined to prolong the session because he wants to take in as much as possible of what at the time he feels to be good. (Some people are so afraid of their greed that they are particularly keen to leave on time.).”

Embora a citação acima por si só apresente vários elementos importantes, sublinhei o que nos interessa neste momento. Na versão que temos em Português (tradução da Imago que é utilizada como referência na formulação da pergunta pelo(a) aluno(a)) o texto é apresentado da seguinte maneira:

Certas pessoas têm tanto medo de sua voracidade que fazem especial questão de sair na hora.“.

Apesar de certas imprecisões estilísticas do tradutor em quase todo o texto, um trecho nos chama a atenção:

“que fazem especial questão de sair na hora.”.

Na frase acima, percebemos que tradução oferecida na versão em Português não parece ser muito fidedigna, gerando então certa dubiedade quanto ao sentido. O trecho original precisa ser analisado através de uma fragmentação. Primeiro quanto ao significado de “keen to” e em seguida “on time“.

Segundo o Dicionário Cambridge, keen significa: 

  • very interested, eager, or wanting (to do) something very much:
    They were very keen to start work as soon as possible.
    – Joan wanted to go to a movie but I wasn’t keen (= I didn’t want to go).

Ou seja, podemos entender que keen é um grande anseio de realizar uma ação, vontade intensa de fazer algo. Desta maneira, de imediato percebemos a imprecisão da versão em Português. A tradução “fazer especial questão” não condiz exatamente com o significado do original, nem com o contexto. Caso traduzíssemos “fazer especial questão” do Português para o Inglês, a frase teria significado totalmente diferente, uma vez que comumente se usará to make a point ou to insist.

E quanto a on time? O Dicionário Cambridge nos dá o seguinte significado para on time:

  • happening or done at the particular moment that it was expected to happen or be done:
    – Why is it that the buses never run on time (= make their journeys in the expected number of hours, etc.)?
    – My parents go to the house right on time.

Vemos então que on time significa algo que acontece ou é feito no momento em que é esperado que aconteça ou seja feito. Portanto, a versão da frase que temos em português carece desta informação, elemento crucial para a interpretação.

Uma tradução mais adequada (livre), seria então:

Certas pessoas têm tanto medo de sua voracidade que desejam intensamente sair no exato momento em que a análise acaba.

ou ainda

Certas pessoas têm tanto medo de sua voracidade que estão particularmente interessadas em saírem no mesmo momento em que a análise termina

Há muitas possibilidades, mas nenhuma deveria conter “fazer especial questão” ou “sair na hora.”, pois isso traz indefinição não somente sobre qual hora está sendo discutida, como levantam diversos entendimentos sobre a inclinação de ações do paciente/cliente. Neste caso, a tradução precisa elucidar que se trata exatamente do fim da análise (aos 45 minutos, por exemplo).

Com isso, a frase fica um pouco mais clara e podemos seguir para as demais questões. Todas as questões têm uma palavra-chave essencial: Medo.

O conceito de medo é muito importante na psicanálise e, embora o sentido lexical possivelmente seja o mesmo para todos autores, a importância/perspectiva do medo varia um pouco para cada um. Klein está ligeiramente alinhada com as ideias de Ernest Jones (artigo “Fear, Guilt and Hate”, 1920), ao menos no conceito de three emotional attitudes (fear, guilt and hate). Isso podemos ver no livro Sobre a teoria da ansiedade e da culpa (1948), onde Klein propõe que o medo da morte é a mais fundamental de todas as ansiedades.

Para uma noção ainda mais clara, podemos nos referir ao artigo de Ernest Jones citado acima, onde em nota de rodapé o autor dá a seguinte explicação para o medo:

“It will be plain that I constantly use the word ‘fear’ in this paper in the clinical sense of anxiety and apprehension, not necessarily in the biological sense of alertness with its appropriate responses.”

Isto é, muito além do sentido biológico de alerta e resposta apropriada (sobrevivência), o medo pode ser entendido como ansiedade e/ou apreensão.

Compreendendo então o medo, partimos para outro ponto importante: voracidade. 

Na obra original, Klein nos explica seguinte sobre voracidade (greed):

“The initial attitude towards food ranges from an apparent absence of greed to great avidity. At this point I shall, therefore, briefly recapitulate some of my conclusions regarding greed: I suggested in the previous paper that greed arises when, in the interaction between libidinal and aggressive impulses, the latter are reinforced; greed may be increased from the outset by persecutory anxiety. On the other hand, as I pointed out, the infant’s earliest feeding inhibitions can also be attributed to persecutory anxiety; this means that persecutory anxiety in some cases increases greed and in others inhibits it.  Since greed is inherent in the first desires directed towards the breast, it vitally influences the relation to the mother and object-relations in general.”

Vemos no trecho acima que a voracidade (greed) poderá ser aguçada ou inibida pela ansiedade persecutória. Isso significa que o medo (ansiedade) é capaz de paralisar/estagnar/deter a voracidade (greed).

O “medo” per se não é antônimo de “fruição e gratificação” como exposto na pergunta. O antônimo de “medo” por excelência deve ser “coragem”, porém é evidente que o uso da gramática nem sempre preza pela excelência. Possíveis antônimos de “medo” que poderiam se aproximar de “fruição e gratificação” seriam calma, paz, sossego etc., porém pouco ou quase nunca usados como antônimos de “medo” legitimamente. A calma, aliás, se aproxima mais do estágio em que o bebê está gratificado, descrito por Klein basicamente como o momento em que o bebê não sente fome (por ter sido amamentado há pouco tempo), portanto também não sente inveja, voracidade etc. (ao menos de maneira intensa). 

Precisamos entender o que causa o medo, pois assim entenderemos como a voracidade e/ou fruição podem ser interrompidas pelo medo. Klein nos diz os seguinte: 

“Since the phantasied attacks on the object are fundamentally influenced by greed, the fear of the object’s greed, owing to projection, is an essential element in persecutory anxiety: the bad breast will devour him in the same greedy way as he desires to devour it.”.

O que significa que o aumento da voracidade significa também aumento do medo. Inicia-se com a gratificação aumentando a voracidade (greed) que poderá despertar medo (ansiedade) no paciente por conta da projeção. O medo de sua própria voracidade, ou seja, do conhecimento prévio do poder devastador da voracidade é o que poderá encerrar a fruição.

Então voltemos ao trecho em português que traduzimos: “Certas pessoas têm tanto medo de sua voracidade que desejam intensamente sair no exato momento em que a análise acaba.“. A voracidade sentida sempre será uma repetição. A nível inconsciente, o indivíduo já vivenciou e experimentou a própria voracidade desde a vida pós-natal, por isso conhece bem a sua intensidade destrutiva. 

A voracidade inicial da vida pós-natal e sua intensidade são ecoadas pelo resto da vida. Inclusive manifesta-se na relação cliente/psicanalista. Conforme o trecho em inglês acima “the fear of the object’s greed, owing to projection, is an essential element in persecutory anxiety”, o medo se estabelece a partir de uma projeção.

A voracidade não deixa de ser vivida de fato, é interrompida pelo medo como defesa. Vale lembrar que, conforme contexto original, o paciente não interrompe a consulta/sessão por conta da voracidade, mas simplesmente permite que a consulta termine no horário em que deve terminar. Apressa-se em permitir que a consulta não se prolongue, pois conhece (inconscientemente) o poder de sua própria voracidade.

A questão sintomática é simples, sempre envolverá as angústias atuais do paciente/cliente. Klein cita a possibilidade de dificuldade de estabelecer relações eróticas e afetuosas por conta da vivência intensa da voracidade. Isto, evidentemente, não é regra. É apenas um exemplo. O paciente, comumente, apresentará sintomas que trabalharão como fonte de prazer alternativa para a voracidade.

Para Jones, o tratamento deve se dar com o equilíbrio da culpa, ódio e medo:

“If the train of thought here presented is substantiated it must have important bearings on the practical problems of therapeutics. The most difficult aim of therapeutic analysis is to induce toleration, first for the reaction of guilt, then for the hate and fear that underlie it, and the greatest obstacle we encounter is the patient’s lack of confidence in the possibility of controlling the originally defensive inhibiting tendency. The battle is half won when he realises that there are other than moral reasons for restraining the gratification of an impulse; it is wholly won when he fully realises that this capacity for restraint, instead of being the danger he has always imagined, is, on the contrary, the only thing that will give him what he seeks, secure possession of his personality, particularly of his libidinal potency, together with self-control in the fullest sense of the word. Then only is he able to deal adequately with reality, both in his own nature and in the outer world”

Em suma, o indivíduo deve ser capaz de construir uma tolerância significativa para a sensação de culpa e em seguida para o ódio e o medo que a fundamentam. 

[1] Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963) / Melanie Klein: tradução da 4ª ed. inglesa; Elias Mallet da Rocha, Liana Pinto Chaves (coordenadores) e colaboradores. — Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

14 comentários em “Medo e voracidade”

  1. Muito interessante o assunto tratado e aguardo ansiosa por mais esclarecimento. Só nao gostei dos trechos escritos em inglês sem a devida tradução já que não dominó o inglês.

  2. Achei muito interessante, mas ainda aguardo mais explicações sobre o medo e a voracidade. Pois entender como o indivíduo projeta a sensação de culpa apartir do medo e do ódio não parece ser uma tarefa fácil.

  3. Sempre aprendemos um pouco mais, e assim vamos construindo nosso conhecimento, medo, culpa e voracidade , sempre nos defrontamos com esses sentimentos.

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